terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Séculos de história numa receita de Brevidade

Na correria diária, entre acordar, trabalhar, pagar contas e resolver as pendengas da vida moderna, pouco tempo resta para refletir sobre o que colocamos à mesa. Há dias, porém, em que uma estranha nostalgia nos possui -- lavando a louça, organizando temperos, folheando antigos livros de receitas -- e quase sem perceber somos levados ao passado. Comida também é memória, por que não?!

Enquanto a chuva caía lá fora, lembrei das brevidades que volta e meia apareciam em casa. Não me pareciam apetitosas à época. Muito pesadas, pálidas, de gosto indefinido e que acabavam grudando no céu da boca. No curso de panificação aprendemos a receita tradicional, feita com polvilho doce. Uma colega de turma sugeriu que juntássemos à massa o aroma de pequi e, sinceramente, fez toda a diferença. A versão original, com canela, também é bastante gostosa, mas a de pequi é imbatível!

Curiosa que sou, fui pesquisar a origem da Brevidade, doce popular e presente na maioria das padarias da região Sudeste. Caí no século XIX -- meu período preferido da História -- e na tradição das quitandeiras de Angola.

Marc Ferrez/ Acervo IMS - Quitandeiras | Rio de Janeiro, RJ, c. 1875

A palavra "quitanda" vem do kimbundo "kitanda", que significa "mercado" ou "feira". Kimbundo, para quem não sabe, é uma língua africana falada no noroeste de Angola, sendo falada como primeiro ou segundo idioma por mais de 3 milhões de pessoas naquele país. Com a vinda de pessoas escravizadas para o Brasil, muito do léxico africano foi incorporado ao nosso Português. 

E o que quitanda tem a ver com as brevidades? Calma, eu chego lá!

As quitandas -- ou seja, as feiras -- eram muito comuns em todo o continente africano. As pessoas espalhavam em tabuleiros suas mercadorias e ofereciam ao público. Vendedoras negras, com trajes vistosos, vendiam frutas diversas, peixes, bolinhos, tecidos, linhas, facas etc. Com a diáspora africana, "kitanda" virou "quitanda". No Brasil, as mulheres negras -- escravas, forras e livres -- armavam seus tabuleiros na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e até no interior de Minas Gerais, para vender produtos alimentícios e utilidades diversas. 

No século XVIII, as quitandas já eram conhecidas a ponto de se tornarem ponto de referência nas capitais -- não à toa existe a "Rua da Quitanda", no Rio de Janeiro. Com o tempo, passaram a denominar os pequenos comércios onde se podiam comprar frutas, verduras, legumes, cereais e algumas pequenas utilidades. 

Se no restante do país o significado de quitanda é este, em Minas Gerais, contudo, a história é um pouco diferente: lá, quitanda se refere ao conjunto de doces, biscoitos e bolos feitos em casa. 

Mesa de quitandas mineiras - Imagem Ilustrativa
Broas, broinhas, sequilhos, biscoitos de polvilho, mães-bentas, rosquinhas e brevidades são apenas alguns dos quitutes que compõem a quitanda mineira;  receitas criadas e/ou adaptadas no século XIX -- tempo de fartura por aquelas bandas -- para evitar o desperdício. Excedentes da produção agrícola daquele tempo, como queijo, manteiga, leite, ovos e açúcar, eram largamente utilizados no preparo das quitandas -- sempre servidas à tarde, ainda hoje, acompanhadas por uma fumegante xícara de café.

Ao lado das broas, bolinhos de chuva, pães de queijo, pãezinhos doces, bolos de milho e biscoitos diversos, a brevidade carrega consigo séculos de história. Pense nisso quando preparar esta receita e se deliciar com o resultado!


BREVIDADES
Rende 6 unidades

90g de ovos (fiquei com preguiça de pesar e usei 2 ovos, considerando o peso médio unitário de 50g)
120g de açúcar 
150g de polvilho doce
1g de sal
quanto baste de canela (opcional. Usei essência de pequi e ficou ó, delícia!)

O segredo aqui está em bater bem os ovos. Primeiro, bata as claras em neve por 6-8 minutos. Junte as gemas ao pouco e deixe bater. Vá despejando o açúcar aos poucos e deixe bater mais um pouco. Desligue a batedeira, junte o polvilho e incorpore aos ovos até ficar homogêneo. É neste momento que acrescento a essência de pequi. Volte para a batedeira e deixe bater bastante, até que a superfície da massa esteja cheia de bolhas (quanto mais bolhas, mais crocante a casquinha ficará). Coloque em forminhas e leve ao forno baixo (200°C) por 30 minutos. Se a casca estiver douradinha, pode tirar do forno.

Espero que gostem!

Até a próxima!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Retorno, pães e descobertas

Fiquei um bom tempo sem postar no blog, mantendo ativas apenas as contas do Instagram e do Facebook. Primeiro, dei uma desanimada geral -- sabe aqueles momentos da vida em que nada mais parece fazer sentido? Pois é. Depois, levantei, sacudi a poeira e fui fazer algo que me animasse um pouco. Foi quando conheci o curso de Panificação oferecido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, o popular SENAI.

Pão rústico? Sei fazer também! :D
Preciso, antes de tudo, situar o(a) leitor(a): sou jornalista e trabalhei por muitos anos com assessoria de imprensa e como repórter. Chegou uma hora, porém, em que o esforço não estava mais valendo a pena -- nem emocionalmente, nem financeiramente. Muito desgaste, muita dor de cabeça, muita injustiça, e a qualidade de vida (leia-se: paz de espírito) indo por água abaixo. Saí do mercado e fui trabalhar com produção cultural. Foi ótimo, mas veio a crise econômica e o setor de entretenimento foi um dos primeiros a ser afetado. Resultado: vários demitidos, inclusive eu. 

Neste contexto, sem perspectiva profissional, comecei a entrar numa deprê perigosa. Foi quando lembrei que, há alguns anos, escrevi uma matéria sobre a Escola de Panificação inaugurada pelo SENAI em Volta Redonda. Como sempre amei cozinhar, achei que seria uma boa -- pra cabeça e pro bolso -- investir em uma nova profissão. 

Existe uma ideia bastante tacanha de que o ensino técnico é algo de menor valor por supostamente exigir menos "esforço intelectual" dos alunos. Confesso que eu, do alto da arrogância de quem tem diploma de curso Superior, compartilhava dessa visão preconceituosa. A EBC, aliás, publicou uma matéria super interessante sobre o assunto, que você pode ler aqui

Bom, apesar da insegurança inicial, fiz minha matrícula. E logo nos primeiros dias de aula percebi que eu estava redondamente enganada. Além de esforço, disciplina e dedicação, o curso de Padeiro exige conhecimento de Matemática (apanhei um bocado no início, nunca fui boa com números, mas hoje tiro de letra!), Química, Física e Biologia. Um bom padeiro tem que saber calcular a quantidade de proteína presente na farinha que vai utilizar e, com base nisso, decidir que ingredientes acrescentará à receita para garantir que o produto final tenha uma boa estrutura, bom sabor, bom aroma e bom aspecto. Tem que saber para quê servem as claras, as gemas, o leite, a gordura. Tem que saber por que se deve usar água gelada na massa, e não água morna. Tem que saber calcular o custo de cada receita e o preço que será apresentado ao consumidor. Tem que saber como limpar cada equipamento, como armazenar os ingredientes corretamente,.. Enfim, coisa pra caramba! 

Pão Alemão
Descobri que a profissão de padeiro é maravilhosa, embora não seja tão reconhecida e valorizada, o que é realmente uma pena. Transformar farinha, água e sal em PÃO é algo mágico, só quem faz entende. 

Agora sou uma padeira formada, com certificado e tudo. Tenho cá meu diploma de jornalista (que não anda valendo muita coisa hoje em dia, afinal...), mas  o de padeira me deu um pouquinho mais de orgulho e alegria, preciso admitir. Por quê? Porque exigiu quebra de paradigmas e me ensinou a ser mais humilde, a descer do pedestal ridículo do "Ensino Superior". Ensinou-me, sobretudo, a dar valor e a amar profissões que lamentavelmente ainda são vistas como inferiores em nosso país. 

Padeiros, cozinheiros, garçons, auxiliares de cozinha, auxiliares de limpeza...todos são importantes e todos exercem profissões dignas e muito bonitas, ainda que não sejam valorizadas pela sociedade em que vivemos. Baixos salários, condições de trabalho estafantes, na maioria das vezes... Acho mesmo que isso tem que mudar. 

Sem padeiro, não há pão. 
Sem pedreiro, não há casa. 
Sem garis, as ruas ficam sujas e emporcalhadas.
Sem cozinheiro, não há comida.
Sem agricultor, não há alimentos.
Sem costureiras, não há roupas -- (aqui fica o meu "salve!" para minha irmã, assistente social que abriu mão do diploma para aprender corte & costura e hoje produz artesanalmente roupas e bolsas lindas demais <3) 

Profissões fundamentais, portanto.
Essenciais!

...

O blog ficou abandonado um bom tempo em função do curso de Panificação e de outras urgências que surgiram, mas a ideia é retomá-lo com força total em 2017!


Um beijo e até a próxima!

domingo, 24 de julho de 2016

Tropeiros, queijo e quiche!

Conheço poucas pessoas que não apreciam queijo. Eu, pelo menos, adoro! Mas não qualquer queijo. Tem que ser especial, tipo aquele queijinho minas super fresco que se compra na feira livre ou o queijo parmesão que vem dentro de um cesto, carregado por uma mulinha que atravessa a Serra da Mantiqueira. 

Pois é. Este queijo, que chamamos aqui carinhosamente de "queijo da mulinha", é o meu preferido. Não só por causa do sabor, que é maravilhoso, mas também por conta de tudo o que há por trás da produção dessa delícia!


Quem visita a região de Visconde de Mauá, Maringá e Maromba, no estado do Rio de Janeiro, eventualmente vai se deparar com os tropeiros da Serra da Mantiqueira e suas simpáticas mulinhas. São eles os responsáveis por fazer chegar às pequenas vendas e pousadas da região, e também aos moradores, o queijo artesanal produzido nas terras altas da Serra (cerca de mil metros de altitude, veja bem!), nas divisas entre os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. É importante frisar que a receita do queijo da Mantiqueira é a mesma desde meados do século XIX, o que torna tudo ainda mais especial.

Sempre trago de lá pelo menos 1kg de queijo e olha, não vou mentir: dura pouco. Quando está quase no finzinho logo tratamos de providenciar mais 1kg. Ficar sem nosso queijinho? De jeito nenhum!

Quem vive por aquelas bandas sabe que os moradores de lá consomem este parmesão derretido na chapa do fogão à lenha ou no popular "arroz com queijo": quando o arroz está quase pronto, colocam-se fatias de queijo dentro da panela e aí é só aproveitar!

Eu poderia escrever um monte sobre o parmesão da Mantiqueira, mas prefiro deixar os links de uma bela matéria, feita pelo jornalista Nelson Araújo e exibida no programa Globo Rural, sobre os tropeiros do parmesão.

Parte I


                                          
                                                                          Parte II

                                                                         Parte III

                                                                         Parte IV

Aqui em casa, o queijo da mulinha vira recheio de queijo quente, pão de queijo, petisco. É comido puro também, acompanhado por um café bem quente e adoçado com açúcar mascavo. E, claro, é a estrela das massas: vai bem com macarrão, gnocchi, lasanha e até sobre caldos e sopas.
Da última vez, entretanto, o parmesão da Mantiqueira virou recheio de uma quiche deliciosa, cuja receita passo logo abaixo:

Quiche de Cebola e Alho Poró com Alecrim e Parmesão






Para esta receita usei dois tipos de cebola: a branca e a roxa, só pra ficar mais bonito e colorido. Você pode usar só um tipo de cebola, se quiser.

Para a massa:

2 e 1/2 xícaras de farinha de trigo
100g de manteiga
1/2 colher (chá) de sal
1 ovo
2 colheres (sopa) de água fria

Numa tigela, adicione todos os ingredientes e misture com as pontas dos dedos até obter uma farofa. Comece a sovar a massa até que fique homogênea. Modele uma bola com a massa e forre o fundo e as laterais de uma fôrma de fundo removível (20 cm de diâmetro). Para abri-la, pode-se usar as mãos em vez do rolo. 
Leve a fôrma forrada com a massa à geladeira e comece a preparar o recheio.

Para o recheio:
1 alho poró grande 
1 cebola grande (roxa ou branca, ou metade de cada uma)
1 colher (sopa) de alecrim fresco picado
1 colher (sopa) de azeite
100g de queijo parmesão picado em cubos
4 ovos
400g de creme de leite
Sal e noz-moscada a gosto

Corte o alho poró em rodelas finas e a cebola em meia-lua. Refogue com o azeite, em fogo médio, por cerca de 5 minutos, mexendo sempre. Junte o alecrim e refogue por mais 3 minutos. Tempere com sal, desligue o fogo e reserve.

Preaqueça o forno a 180°C. 

Numa tigela, junte o creme de leite, os ovos e misture bem com um garfo ou um fouet, até ficar homogêneo. Tempere com o sal e a noz-moscada.

Retire a fôrma da geladeira. Distribua o alho poró e as cebolas na fôrma, de forma que todo o fundo fique coberto. Coloque os cubos de queijo. Em seguida, despeje cuidadosamente a mistura de ovos e creme de leite. 

Leve ao forno pré-aquecido e deixe assar por aproximadamente 30 minutos ou até que a superfície esteja dourada. Sirva.

Intenso e delicioso!
Inté! :)