Na correria diária, entre acordar, trabalhar, pagar contas e resolver as pendengas da vida moderna, pouco tempo resta para refletir sobre o que colocamos à mesa. Há dias, porém, em que uma estranha nostalgia nos possui -- lavando a louça, organizando temperos, folheando antigos livros de receitas -- e quase sem perceber somos levados ao passado. Comida também é memória, por que não?!
Enquanto a chuva caía lá fora, lembrei das brevidades que volta e meia apareciam em casa. Não me pareciam apetitosas à época. Muito pesadas, pálidas, de gosto indefinido e que acabavam grudando no céu da boca. No curso de panificação aprendemos a receita tradicional, feita com polvilho doce. Uma colega de turma sugeriu que juntássemos à massa o aroma de pequi e, sinceramente, fez toda a diferença. A versão original, com canela, também é bastante gostosa, mas a de pequi é imbatível!
Curiosa que sou, fui pesquisar a origem da Brevidade, doce popular e presente na maioria das padarias da região Sudeste. Caí no século XIX -- meu período preferido da História -- e na tradição das quitandeiras de Angola.
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A palavra "quitanda" vem do kimbundo "kitanda", que significa "mercado" ou "feira". Kimbundo, para quem não sabe, é uma língua africana falada no noroeste de Angola, sendo falada como primeiro ou segundo idioma por mais de 3 milhões de pessoas naquele país. Com a vinda de pessoas escravizadas para o Brasil, muito do léxico africano foi incorporado ao nosso Português.
E o que quitanda tem a ver com as brevidades? Calma, eu chego lá!
As quitandas -- ou seja, as feiras -- eram muito comuns em todo o continente africano. As pessoas espalhavam em tabuleiros suas mercadorias e ofereciam ao público. Vendedoras negras, com trajes vistosos, vendiam frutas diversas, peixes, bolinhos, tecidos, linhas, facas etc. Com a diáspora africana, "kitanda" virou "quitanda". No Brasil, as mulheres negras -- escravas, forras e livres -- armavam seus tabuleiros na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e até no interior de Minas Gerais, para vender produtos alimentícios e utilidades diversas.
No século XVIII, as quitandas já eram conhecidas a ponto de se tornarem ponto de referência nas capitais -- não à toa existe a "Rua da Quitanda", no Rio de Janeiro. Com o tempo, passaram a denominar os pequenos comércios onde se podiam comprar frutas, verduras, legumes, cereais e algumas pequenas utilidades.
Se no restante do país o significado de quitanda é este, em Minas Gerais, contudo, a história é um pouco diferente: lá, quitanda se refere ao conjunto de doces, biscoitos e bolos feitos em casa.
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Mesa de quitandas mineiras - Imagem Ilustrativa |
Broas, broinhas, sequilhos, biscoitos de polvilho, mães-bentas, rosquinhas e brevidades são apenas alguns dos quitutes que compõem a quitanda mineira; receitas criadas e/ou adaptadas no século XIX -- tempo de fartura por aquelas bandas -- para evitar o desperdício. Excedentes da produção agrícola daquele tempo, como queijo, manteiga, leite, ovos e açúcar, eram largamente utilizados no preparo das quitandas -- sempre servidas à tarde, ainda hoje, acompanhadas por uma fumegante xícara de café.
Ao lado das broas, bolinhos de chuva, pães de queijo, pãezinhos doces, bolos de milho e biscoitos diversos, a brevidade carrega consigo séculos de história. Pense nisso quando preparar esta receita e se deliciar com o resultado!
Rende 6 unidades
90g de ovos (fiquei com preguiça de pesar e usei 2 ovos, considerando o peso médio unitário de 50g)
120g de açúcar
150g de polvilho doce
1g de sal
quanto baste de canela (opcional. Usei essência de pequi e ficou ó, delícia!)
O segredo aqui está em bater bem os ovos. Primeiro, bata as claras em neve por 6-8 minutos. Junte as gemas ao pouco e deixe bater. Vá despejando o açúcar aos poucos e deixe bater mais um pouco. Desligue a batedeira, junte o polvilho e incorpore aos ovos até ficar homogêneo. É neste momento que acrescento a essência de pequi. Volte para a batedeira e deixe bater bastante, até que a superfície da massa esteja cheia de bolhas (quanto mais bolhas, mais crocante a casquinha ficará). Coloque em forminhas e leve ao forno baixo (200°C) por 30 minutos. Se a casca estiver douradinha, pode tirar do forno.
Espero que gostem!
Até a próxima!